Provocado, o documentarista Bellini Andrade produziu o curta-metragem Do Mato à Mesa. O filme mostra pesquisas da Epamig, e traz receitas mineiras feitas com plantas especiais
As PANCs, ou Plantas Alimentícias Não Convencionais, não fazem mais parte do nosso cardápio cotidiano, mas, no passado, já fizeram parte da nossa rotina alimentar, influenciando a culinária e a cultura local e regional, numa tradição passada de geração em geração. Atiçado pela curiosidade e pelas possibilidades na gastronomia, o documentarista Bellini Andrade reuniu em um filme pesquisas realizadas pela Empresa de Pesquisa Agropecuária de Minas Gerais (Epamig) e receitas mineiras feitas com essas plantas especiais
A Epamig vem realizando ações para promover e resgatar o cultivo e o consumo de PANCs na alimentação dos mineiros, em um projeto que integra o Programa Estadual de Pesquisa em flores, hortaliças e plantas medicinais da empresa.
Desde 2008, a Epamig estuda mais de 30 espécies de PANCs: taioba, ora-pro-nobis, araruta, mangarito, azedinha, capuchinha e outras, cultivadas no Banco de Hortaliças não convencionais do Campo Experimental de Santa Rita, em Prudente de Morais (MG). São apenas algumas das mais de 3 mil espécies de PANCs conhecidas e identificadas. De acordo com publicação de 2021, na Revista Thema, há mais de 30 mil espécies brasileiras com potencial alimentício e a indicação de que 10% da nossa flora sejam plantas alimentícias.
Apesar de terem sido consumidas rotineiramente no passado, hoje as PANCs são pouco conhecidas e podem lembrar algo exótico, peculiar ou estranho, o que, no universo gastronômico, pode ganhar destaque. Apesar do estranhamento que possam causar, as PANCs podem ter uma delicadeza no sabor, proporcionando pratos apetitosos. Ao mesmo tempo, seu uso representa a possibilidade de resgate de aspectos relacionados à nossa identidade e cultura.
Provocado pela curiosidade e pelo universo de possibilidades que as PANCs trazem para a gastronomia, o documentarista Bellini Andrade registrou, no curta-metragem Do Mato à Mesa, pesquisas que vêm sendo realizadas pela Epamig, trazendo receitas mineiras feitas com essas plantas especiais, como bolo de ora-pro-nobis, pastel de umbigo de banana, frango com cansanção, peixinho da horta empanado, bombom de vinagreira e outras receitas.
De acordo com Bellini, a descoberta sobre as PANCs surgiu ao assistir, junto à namorada Viviane Almeida, uma live promovida pelo Mercado da Lagoinhas, do Centro de Referência em Segurança Alimentar e Nutricional da Prefeitura de Belo Horizonte – CRESAN/PBH. Na live, Marinalva Woods, engenheira agrônoma, mestra e doutora em fitotecnia e pesquisadora da Epamig de Prudente de Morais, falava sobre as pesquisas realizadas pela instituição e as diversas possibilidades de uso das PANCs na alimentação e Viviane Almeida, nutricionista da Prefeitura de Belo Horizonte, viu nessas plantas uma opção alimentar e nutricional.
Em contato com Marinalva, Bellini conseguiu suporte técnico para montar o projeto do documentário. E foi por Prudente de Morais, onde a Epamig disponibiliza mudas para a propagação dessas culturas, que a história começou. Após o primeiro contato com as PANCs, Bellini seguiu para São João Del Rei, onde foi recebido pela pesquisadora Izabel Cristina dos Santos, engenheira agrônoma, doutora em fitotecnia. E, desde então, as descobertas não param.
Bellini passou por Itabirito e experimentou o tradicional pastel de angu, que, originalmente, é feito com o umbigo ou coração da banana, como chamam alguns. “O umbigo da banana substitui a carne em alguns pratos tradicionais”, explicou. Ele passou também por Sabará, onde descobriu mais de 45 tipos de produtos diferentes utilizando a jabuticaba como matéria-prima, em receitas doces e salgadas como licor, geleia, pães, e muito mais.
Bellini explicou que temos 3 espécies de jabuticaba e uma delas leva o nome de Sabará, muito merecido, considerando que, para o município, a jabuticaba representa uma importante atividade econômica. Tão importante que há 36 anos Sabará realiza, anualmente, o Festival da Jabuticaba, uma festa tradicional e muito esperada por cidadãos do município e da região.
O documentarista falou também do pequi, que, apesar de conhecido, como a jabuticaba, é consumido regionalmente, não fazendo parte de grandes circuitos comerciais, além de ser cultivado por uma rede de pequenos produtores e não ter produção em larga escala. Falou também do polvilho de araruta que já foi muito utilizado em receitas mineiras tradicionais e hoje é difícil de ser encontrado. Segundo ele, o polvilho de araruta ainda é encontrado no Mercado Central de Belo Horizonte, mas sabemos que já é uma planta pouco conhecida pela pessoas, atualmente.
Ao longo das visitas e experimentações de receitas, Bellini descobriu que as PANCs podem agradar o paladar, com diferentes possibilidades de uso. Experimentou o bolo de ora-pro-nobis e o frango com cansansão feito pela Ângela, os pães e bolo de fubá com uso de bertalha, nas receitas do Sérgio Jado – professor de panificação no Mercado Lagoinha/CRESAN –, também utilizadas nas saladas da Larissa Pardim, culinarista e professora de gastronomia do CRESAN.
Bellini Andrade encontrou inúmeras possibilidades para a culinária com uso de PANCs: sobremesas feitas de araruta ou creme de tomate de árvore – também chamado de tamarilho –, chás de hibisco – conhecido também como vinagreira –, saladas de capuchinha e picão-da-praia, e um destaque interessante: os aspectos visuais diferenciados de drinks e pães de queijo com o verde da taioba, o azul do jenipapo e o vermelho do hibisco, nas receitas do Chef de cozinha e professor do SENAC Michel Abras.
A proposta trazida por Bellini no documentário acaba indo além da proposta inicial, que seria apresentar a planta e diferentes nomenclaturas, mostrar todo o seu processo de cultivo, como o plantio, manejo, colheita, processamento e usos na culinária.
Na construção do documentário, Bellini percebeu que conhecemos muito pouco sobre o universo das PANCs, e identificou algumas controvérsias sobre elas, como, por exemplo, o que pode ou não ser considerado não convencional, e divergências de nomenclatura. Explica então que plantas que não estão no circuito de mercado e que são utilizadas regionalmente, como o pequi e a jabuticaba, são consideradas PANCs. Isso porque, apesar de serem espécies conhecidas por muitas pessoas, já não fazem mais parte do cardápio e vêm deixando cada vez mais de serem utilizadas na alimentação.
Outro aspecto importante é a diferenciação das plantas. Inhame e taioba, por exemplo, se parecem, mas têm suas diferenças. “As folhas são muito parecidas, mas o caule do inhame é vinho pra roxo e come-se o tubérculo, e o caule da taioba é verde, da cor da folha, e come-se a folha”, explica o documentarista.
Na história das PANCs, Bellini Andrade valoriza as histórias e tradições orais e destaca que, em algumas culturas, as PANCs são chamadas ancestrais, e carregam junto uma tradição cultural. Como a Tuquinha, moradora do Quilombo da Chacrinha em Belo Vale, que pede licença para colher a saborosa, que cresce em uma área de ruínas, para ser usada em pratos feitos com costelinha, e para o carapiá que utiliza em receitas de tortas. E faz sentido a Tuquinha pedir licença para colher as plantas: o cansanção, por exemplo, é considerado uma urtiga, e sua colheita deve ser cuidadosa para não provocar queimadura.
Com um tema vasto a ser explorado e grande volume de material, Bellini pretende dar continuidade ao assunto transformando o conteúdo em pílulas de vídeos, que serão disponibilizadas ao longo do tempo para quem tiver interesse em saber mais sobre o assunto, já que o documentário tem tempo limitado.
O filme, Do Mato à Mesa, terá duração aproximada de 15 minutos, e foi aprovado em edital do Fundo Estadual de Cultura de 2021, promovido pela Secretaria de Cultura e Turismo de Minas Gerais (Secult), cujo tema era Cozinha Mineira. “Não é um documentário de receita, mas um universo de possibilidades de uso”, conclui.
O documentário tem previsão para ser lançado ainda no primeiro semestre deste ano.
As Plantas Alimentícias Não Convencionais, ou PANCs, são espécies vegetais com uma ou mais partes alimentícias: raiz, caule, folhas e frutos. Podem ser espontâneas ou cultivadas, nativas ou exóticas. São espécies com valor nutricional, socioeconômico e cultural e estão cada vez mais inseridas nos debates nacionais e internacionais sobre segurança alimentar, nutricional e produção sustentável. Um artigo publicado em fevereiro deste ano na Revista Brasileira de Agroecologia fala sobre as PANCs como “estratégia para diversificação dos sistemas de produção, promoção de autonomia no campo e nas cidades e mitigação dos efeitos adversos das mudanças climáticas sobre a agricultura.”
Muitas vezes consideradas mato, plantas daninhas ou pragas, as PANCs são de custo tecnológico reduzido de produção e de fácil adaptação climática, resistentes a pragas e doenças e têm baixa necessidade hídrica, assim como pequena exigência nutricional do solo.
Embora sejam estudadas atualmente pela Epamig, EMBRAPA e outras instituições de pesquisa, os estudos sobre as PANCs ainda são escassos. Para exploração de seu potencial econômico é importante que mais estudos sejam realizados para conhecimento aprofundado sobre o seu comportamento, de forma que seja possível a domesticação daquelas que ainda não são domesticadas, e um melhor entendimento sobre seu cultivo e uso.
Pela crescente demanda, pelo grande interesse gastronômico e como iguaria para uso culinário, com diferentes nichos de mercado – alimentação, ornamentação e paisagismo –, as PANCs despontam como oportunidade de negócios sustentáveis, com produtos de alto valor agregado.
Não podemos deixar de ressaltar, ainda, que o resgate e a multiplicação das PANCs contribuem para a preservação do patrimônio genético e para a segurança e soberania alimentar e nutricional no Brasil.